terça-feira, 20 de abril de 2010

Perpétua Angústia


Uma das características que ajudam a entender uma ação compulsiva é o prazer no ato. Porém, o maior desafio está em compreender atos compulsivos onde esse "encanto" não existe; nela, o que predomina é a forma repetitiva e muitas vezes sem nexo


Sergio Nick é psiquiatra e psicanalista, atual secretário da federação Brasileira de Psicanálise (febrapsi), professor do curso introdutório de Teoria freudiana no instituto da sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (sBPRJ) e do curso "Desenvolvimento emocional da criança e do adolescente" da clínica social da sBPRJ.

Corre por aí a história de um senhor que, após ter "devo- rado" quase toda uma caixa de um quilo (!) de bombons de chocolate, vira-se para a esposa e diz: "Querida, tira esta caixa daqui. Estes bombons são meio enjoativos!"... Mas que danado, hein! Come dezenas de bombons para depois menosprezá-los! Histórias divertidas como essa nos tra- zem a compreensão de como a "compulsão nossa de cada dia" nos atinge, e como lidamos com ela.

Quem nunca se viu às voltas com a necessidade de controlar certos im- pulsos? Seja para comer, jogar, falar, comprar, e por aí vai a extensa lista de possibilidades de compulsão. O que as une é a presença do prazer no ato. Assim como a delícia dos bombons do personagem citado acima, que o fizeram comer até sentir enjoo, po- demos encontrar em cada um desses atos compulsivos listados um prazer que, de certa forma, está presente e é facilmente identificável. O que com- plica aqui é a percepção de que mui- tas vezes não podemos identificar esse prazer - pelo menos não à primeira vista - numa série de compulsões que atingem um sem-número de pessoas e que as fazem ficar presas num ato repetitivo, aflitivo e muitas vezes sem nexo. Tal é a característica da compul- são que queremos abordar.

Pensamos no jovem que não con- segue largar seu videogame, mesmo sabendo que há algo que ele deseja muito fazer, diferente daquele jogo! Ou daquela moça que não consegue parar de arrancar seus cabelos, mesmo percebendo que está ficando com áreas de alopecia em seu couro cabeludo. Ou mesmo aquela famosa primeira-dama filipina, cujos milhares de pares de sapatos adquiridos ao longo de uma vida mostravam um aspecto do con- sumismo que beira a loucura, não é mesmo? Compulsão traz, então, o sentido de compelir, daquilo que compele, que constrange.

Mas como se definiria psicanali- ticamente a compulsão? Laplanche e Pontalis1 dizem que é um "tipo de comportamento que o indivíduo é levado a realizar por uma coação in- terna. Um pensamento (obsessão), uma ação, uma operação defensiva, mesmo uma seqüência complexa de comportamentos, são qualificados de compulsivos quando a sua não reali- zação é sentida como tendo de acar- retar um aumento de angústia."

E aqui temos a diferença em relação às situações comuns da vida: o compul- sivo não consegue sair de sua roda-viva, de seu sintoma, porque isso acarretaria em um aumento de angústia para ele! É nesse viés que o trabalho psicanalíti- co se diferencia: enquanto não auxiliar- mos o sujeito a encontrar outras formas de escoar seu excesso pulsional, a com- pulsão não se vai; ela fica ali a percorrer esses caminhos que se perpetuam!

Construção de novas vias

Freud, desde o princípio, dizia que um dos objetivos da terapia psi- canalítica era justamente ampliar as vias de facilitação. Ele queria tirar o neurótico de sua prisão, ampliando suas formas de expressão, aumentan- do sua gama de saídas ante a angús- tia. Onde havia apenas um caminho, Freud propunha que oferecêssemos a oportunidade de construção de novas vias. Em vez do insistir compulsivo ser em uma só descarga, buscar ou-tras que aumente o arsenal expressivo do sujeito. Muito de sua metapsico- logia foi dedicada à compreensão do psiquismo e das formas como ele se estrutura para dar vazão à pulsão.

Mas voltando ao estudo da compul- são, escolhemos o dizer de Lowenkron2, que informa que "as características da compulsão são, em suma, as seguintes: sua estranheza em relação aos compor- tamentos ou às ações habituais do sujei- to: a tendência para a repetição; a con- vicção de um desfecho desastroso se ela não for levada em conta, e a promessa de um alívio real se lhe for permitido o livre curso; (e) certa antinomia com os interesses do Eu." Achamos importante destacar esse último aspecto: na medi-da em que a saída compulsiva não se coaduna de todo com os objetivos do Eu, ela é vivida como um corpo estranho, algo a ser eliminado que o sujeito não consegue alterar.

Compulsão traz, então, o sentido de compelir, daquilo que compele, que constrange


Estudos indicam que muitos jovens confundem vício em vídeogame por compulsão. Para este diagnóstico é necessário que haja um prazer desmedido, um ato cíclico e aflitivo
Temos hoje uma grande batalha pela frente. O número de compulsões aumenta na esteira da forma como somos instados a viver. Como nos informa Dufour: o capitalismo avançado nos compele ao desapego, à falta de laços fraternos, ao descompromisso. A tal dama filipina mostra ser o ideal que o sistema capitalista aspira, ou seja, um sujeito sem um apego outro que o consumo pelo consumo: acrítico, compulsivo. Ao sujeito neu- rótico freudiano do século passado, surge agora a demanda pelo sujeito borderline: "Com efeito, é preciso que os fluxos de mercadoria circulem, e eles circulam ainda melhor porque o velho su- jeito freudiano, com suas neuroses e suas falhas nas identificações que não param de cristalizar-se em formas rígidas antiprodutivas, será substitu- ído por um ser aberto a todas as conexões. Em suma, levanto a hipótese de que esse novo estado do capitalismo é o melhor produtor do sujeito esquizoide da pós-modernidade. No entanto, ele não é o sujeito neurótico preso numa culpabili- dade compulsiva, mas, sim, um sujeito precário, acrítico e psicotizante, aberto a todas as flutuações identitárias e, consequentemente, pronto para to- das as conexões mercadológicas.

Temos hoje uma grande batalha pela frente. O número de compulsões aumenta na esteira da forma como somos instados a viver. Como nos informa Dufour: o capitalismo avançado nos compele ao desapego, à falta de laços fraternos, ao descompromisso. A tal dama filipina mostra ser o ideal que o sistema capitalista aspira, ou seja, um sujeito sem um apego outro que o consumo pelo consumo: acrítico, compulsivo. Ao sujeito neu- rótico freudiano do século passado, surge agora a demanda pelo sujeito borderline: "Com efeito, é preciso que os fluxos de mercadoria circulem, e eles circulam ainda melhor porque o velho su- jeito freudiano, com suas neuroses e suas falhas nas identificações que não param de cristalizar-se em formas rígidas antiprodutivas, será substitu- ído por um ser aberto a todas as conexões. Em suma, levanto a hipótese de que esse novo estado do capitalismo é o melhor produtor do sujeito esquizoide da pós-modernidade. No entanto, ele não é o sujeito neurótico preso numa culpabili- dade compulsiva, mas, sim, um sujeito precário, acrítico e psicotizante, aberto a todas as flutuações identitárias e, consequentemente, pronto para to- das as conexões mercadológicas.

Fonte: Psiqué, Ciência e Vida

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