A sociedade moderna vive um lamentável conflito de valores que até mesmo a relação humana mais próxima e forte, a parental-filial, beira o abismo do egoísmo bárbaro
Jorge Forbes
“Filhos... Filhos? Melhor não tê-los! Mas se não os temos, como sabê-lo?”, dizia o poetinha, em seu Poema Enjoadinho. Não há relação humana mais fundamental que de filhos com pais e vice-versa. Fundamental e ambivalente: um filho ao mesmo tempo em que representa a continuidade, a prolongação da mãe, ou do pai, é também a sua diferença e o seu limite. É, paradoxalmente, a extrema proximidade e semelhança quem ao mesmo tempo melhor revela a diferença entre as pessoas, o que, para muitos, é insuportável.
Não raro se escuta de um pai: – “Onde está esse menino, ah, eu mato quando eu encontrá-lo, isso não se faz...”. E de um filho: – “Pô, meu, não aguento mais essa velha, vive cansada, perdida, se esquecendo de morrer”.
São comentários do dia-a-dia que não chocam ninguém, uma vez que todos se identificam com o desespero de uma pessoa ao notar que mesmo na relação humana mais próxima há sempre uma distância intransponível.
A educação é a forma mais clássica de diminuir a distância entre pais e filhos, daí a expressão: – “Se comporta de uma maneira que nem parece meu filho”; o que, pelo contrário, equivale a dizer que comportar-se como os pais, ou melhor que eles, nos critérios familiares, faz o filho ser mais reconhecido como próprio. E sabemos que nem sempre a disciplina educativa é dócil: castigos de gama variável são comuns
– de ambas as partes, há que se dizer
– dentro de um limite que não está fixado em lugar nenhum, mas é compartido em um sentimento comum de pertinência, que poderia ser aproximadamente traduzido em uma máxima: jamais a vertente agressiva pode suplantar a vertente amorosa, quando isso ocorre surge a repugnância.
A quebra do pacto social
Recentemente a imprensa perguntou e até mesmo criticou, chamando de “circo”, a reação popular de euforia expressa em gritos de vitória acompanhados de rojões, assim que foi promulgada a sentença que considerou culpado o casal Nardoni, pela morte da menina Isabella. No entanto, é bem compreensível essa manifestação.
Ocorre que a sociedade humana é a única que não sobrevive pelos instintos naturais, c tos como ocorre em todas as outras classes de animais. É vital à nossa espécie o pacto social; este, quando rompido, põe em risco a própria espécie. Chamamos de crime hediondo esse tipo de comportamento que nos repugna, como já dito, por agredir a todos. O pacto social é um pacto surdo que responde mais ao sentimento que à razão e, entre todos os crimes hediondos, o pior é o assassinato de um filho por um dos pais, ou o seu contrário. Se esse ponto do pacto não for respeitado, nada mais o será, daí os fogos e o júbilo exaltado. Devemos criticar quem festeja a vitória da humanidade sobre a psicopatia, o narcisismo ensandecido, o egoísmo bárbaro?
“Se tirarmos a responsabilidade de cada um frente às suas emoções está aberto o caminho para o infortúnio geral”
E por que pais podem chegar a matar filhos e filhos, a matar pais? Há mais de uma razão, comento as mais freqüentes. O princípio geral é o que já foi referido, a saber, que não há vínculo mais forte que o parental- filial, o que faz com que aqueles que são os melhores alvos de carinho, são também os alvos preferidos das agressões. Falemos de três desses motivos. Primeiro, os estados ditos crepusculares: é como se o cérebro entrasse em curto-circuito levando a pessoa a cometer uma atrocidade de uma forma impulsiva, podendo mesmo ter dificuldade de lembrança, logo em seguida. Segundo, os casos de perversão, quando o outro, o filho ou o pai, é visto como puro objeto de manipulação interesseira, não valendo sua vida mais que os vinténs de satisfação que sua morte pode trazer ao assassino, como, por exemplo, provar o seu suposto amor para uma parceira que pede o sacrifício de um filho como prova de sentimento por ela. Terceiro, alguns casos de psicose, aonde há falha grave nos processos de individuação, fazendo com que a presença de um filho possa causar uma crise de identidade em um dos pais, do gênero que se expressa na fórmula: se ele sou eu, então quem sou eu, eu não existo? Se ele sou eu, ele tem de deixar de existir para que eu exista.
O fato de podermos mal falando “entender” esses quadros patológicos, não quer dizer de nenhuma maneira que por isso os justifiquemos: compreender, no caso, não é justificar. Se tirarmos a responsabilidade de cada um frente às suas emoções está aberto o caminho para o infortúnio geral.
Fonte: Psique Ciência e Vida / Jorge Forbes é psicanalista e médico-psiquiatra. É Analista Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (A.M.E.), Preside o IPLA – Instituto da Psicanálise Lacaniana e dirige a Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano da USP. www.jorgeforbes.com.br
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