quinta-feira, 17 de junho de 2010
Contactando a Realidade
A afetividade está sempre atuando na pessoa e todos os conteúdos do acontecer mental, que são as vivências, possuem sempre um conteúdo afetivo. Nas vivências o significado afetivo é prevalente e mesmo as vivências praticamente sem significado afetivo, como, por exemplo, na atividade exclusivamente cognitiva do raciocínio, existe sempre um componente afetivo. A afetividade é, portanto, uma atividade.
Falar que a afetividade é uma atividade enfatiza a idéia de que ela é essencialmente dinâmica e é nesse dinamismo que aparece a maior riqueza da vida mental, quer pela sua variabilidade, quer pela sua flexibilidade e possibilidades de transformação. Neste sentido, cabe perfeitamente designá-la como uma atividade.
A Afetividade é Significante
A natureza da afetividade é basicamente a de um estado significante, que dá um significado especial - o significado afetivo - sobre as coisas e os acontecimentos vividos, isto é, sobre os conteúdos das vivências. O estado é meu, o significado é meu, mas se trata do significado sobre algo. Esse significado adjetiva as vivências e os objetos.
O significado afetivo, então, se atrela ao objeto além da sua definição. É assim, por exemplo, que quando encontramos uma pessoa de quem gostamos muito sentimos alegria. Podemos dizer que a vivência que temos em encontrar essa pessoa se impregna de alegria. Atrela-se, assim, à imagem que temos dessa pessoa naquele momento nossa alegria em encontrá-la. Mas a imagem da pessoa, quem ela é, suas características, nada têm a ver com a alegria que sentimos. Trata-se de um significado que transcende ao objeto, mas que é aposto a ele.
Não se trata de querermos sentir alegria ao ver a pessoa, apenas sentimos essa alegria. Da mesma forma, pode acontecer de, ao nos despedir dessa pessoa, o afastamento nos cause tristeza. Mesmo sem querer sentir tristeza. É assim que um mesmo objeto pode implicar numa vivência impregnada de diversos sentimentos. Em dois momentos diferentes o mesmo objeto adquire um significado afetivo oposto, sem deixar de ser exatamente o mesmo objeto. O significado é uma qualidade vivenciada sobre o objeto, qualidade essa que varia conforme o significado do momento vivencial em relação ao objeto.
Contactando a Realidade
A nossa cultura registra em Platão (427-374 AC) a primeira reflexão sobre uma nova espécie de realidade experimentada pelo ser humano e que não corresponde exatamente à realidade objetivamente verdadeira: trata-se da realidade psicológica. Santo Agostinho (354-430 d.C.), considerado grande inspirador do movimento existencialista e até da psicanálise, inspirou sua obra na realidade das experiências interiores do ser humano, propondo a idéia de que os sentimentos são dominantes e que o intelecto é seu servo.
Em seu livro Confissões, Santo Agostinho foi o primeiro a centralizar-se na introspecção psicológica, sugerindo também, uma completa revisão do pensamento anterior, segundo o qual o raciocínio dedutivo era o único instrumento de constatação da verdade e da realidade (racionalismo). Ele negava, categoricamente, a capacidade do ser humano para encontrar a verdade confiando apenas em suas próprias faculdades.
John Locke (1632-1704) acreditava também na existência de duas realidades: uma delas conferida pela percepção dos objetos e denominada experiência exterior e uma outra, determinada pela percepção dos sentimentos e desejos, a que chamou de experiência interior. A doutrina de Locke foi muito bem desenvolvida por Berkeley (1685-1753) e por David Hume (1711-1776), os quais concluíram que nenhum conhecimento absoluto é possível, e aquilo que sabemos da realidade é baseado na experiência subjetiva (experiência interior), a qual não reflete necessariamente o quadro verdadeiro do mundo. William James (1842-1910), no século passado, enfatizou a natureza altamente pessoal dos processos de pensamento e o caráter sempre mutável das percepções do mundo, alteradas que são pelo estado subjetivo da pessoa que percebe.
Perceber a realidade exatamente como ela é tem sido uma tarefa totalmente impossível para o ser humano. Nós nos aproximamos variavelmente da realidade, de acordo com nossas paixões, nossos interesses, nossas crenças, nosso acervo cultural, etc. É assim, por exemplo, que uma pessoa perdidamente apaixonada terá um julgamento muito pessoal acerca da pessoa que ama. Normalmente, nestes casos, a força da paixão turva a avaliação objetivamente correta do objeto amado. Da mesma forma pode-se dizer que a realidade experimentada por um botânico diante de uma orquídea será sempre diferente da realidade experimentada pelo poeta, acerca da mesma orquídea. A realidade do índio pode ser plena de determinados deuses que estão ausentes na nossa, assim como nossos micróbios não participam da realidade dele e assim por diante.
Embora a representação do real seja particular em cada um de nós, como dissemos, a compreensão do mundo percebido e introjetado deve ser organizada segundo as regras comuns de um mesmo sistema cultural e, desta forma, tornar possível a convivência e a comunicação entre as pessoas de uma mesma cultura. Este sistema sócio-cultural que reconhece o direito da apercepção (ou procepção, ou representação) de cada um de nós, também estabelece uma determinada faixa de compatibilidade entre as pessoas. Uma faixa de variáveis onde as diversas maneiras de experimentar e sentir o mundo não comprometa a viabilidade da vida gregária.
A esta faixa de congruência sugerimos chamar de Concordância Cultural. Trata-se de um conjunto de valores, normas e modelos capazes de definir um determinado grupo cultural e identificar os indivíduos de um mesmo sistema mediante um contacto mais ou menos consensual com certos aspectos da realidade.
Assim sendo, as infinitas variações pessoais na representação da realidade devem, apesar de infinitas, manter-se dentro da concordância cultural para serem consideradas normais. Seria como a variação infinita das impressões digitais. Mesmo diante da infindável variedade entre todas as impressões digitais, há alguma concordância entre elas. No momento em que nos defrontamos com impressões digitais formadas por linhas retas e paralelas, ou regularmente quadradas e concêntricas, certamente estaremos diante de impressões digitais anormais.
Fonte: Psiqweb
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário