segunda-feira, 26 de abril de 2010

A Literatura e a Filosofia no altar




Representação de Dom Quixote, o engenhoso fidalgo, cavaleiro da triste figura que concilia o sublime, o patético e o burlesco


Muitos autores usam a estrutura do romance e seus personagens para discutir temas filosóficos. Além disso, o aforismo, na fronteira entre poesia e Filosofia, é um recurso bastante utilizado

POR MARCELO BACKES

O romance filosófico é a Filosofia com caráter lúdico, a Metafísica com jogo de cintura, o tratado que sabe dançar. Onde fica, aliás, a fronteira entre Literatura e Filosofia? O romance O homem sem qualidades, de Robert Musil, por acaso não é uma das maiores obras filosóficas do século XX? Ademais, Platão escreveu tratados cheios de personagens e Nietzsche é considerado antes poeta do que filósofo por muitos. O parentesco entre escritores e filósofos é tanto que Arthur Schnitzler, em seu romance O caminho para a liberdade – uma das grandes obras alemãs da era burguesa –, compara diretamente os filósofos aos poetas e em seguida ainda degrada os filósofos a meros brincalhões, dizendo que qualquer sistema filosófico ou moral é um mero jogo de palavras, “uma fuga da abundância móvel dos fenômenos para a rigidez de marionete das categorias.”1

O romance sempre foi território dos mais favoráveis para ilustrar a dimensão humana das grandes questões filosóficas, fazendo as ideias brilharem em um enredo com personagens em conflito e ensaiando vida real e cotidiana através da ficção. Sigmund Freud, o pai da psicanálise, aprendeu muito com a Literatura e fundamentou algumas de suas principais teorias usando construções literárias gregas, além de citar exaustivamente autores como Shakespeare, Goethe e Heine.

Já o filósofo Karl Marx disse que aprendeu muito mais com Dickens e Balzac sobre a Inglaterra e a França do que com os economistas ingleses e franceses da mesma época. A ênfase das exposições teórico-culturais e estéticas do filósofo busca revelar as certezas objetivas e as leis gerais da cultura, da própria estética e da Literatura. Quando analisa uma obra ou uma situação literária, Marx sempre investiga a possibilidade e as perspectivas do ser humano. Um exemplo concreto disso pode ser observado em A ideologia alemã,2 obra em que Marx e Engels dinamitam – quase como críticos literários da mais alta estirpe – as obras dos jovens hegelianos, estendendo a abrangência das considerações que já haviam feito em obras anteriores como A sagrada família.Sobra especialmente para Ludwig Feuerbach, Max Stirner e Karl Grün. A crítica de Max Stirner, uma espécie de bisavô do existencialismo, chega a evocar diretamente uma das maiores obras da Literatura universal: o Dom Quixote, de Cervantes. As comparações são ácidas e incontáveis. Em determinado momento, Stirner passa a ser São Sancho, e Marx e Engels parodiam episódios que envolvem não apenas os moinhos de vento, mas inclusive o elmo de Mambrino, a gorda Maritornes e o ruço do escudeiro. Até mesmo Camões é citado por Marx e Engels – no original português! – para desancar a filosofia do “único” de Max Stirner.

“Os aforismos são formas de ‘eternidade’: a minha ambição é dizer em dez frases o que outro qualquer diz num livro, o que outro qualquer ‘não’ diz nem num livro inteiro” NIETZSCHE


Leitura de poesia. Trata-se de um preconceito a tese de que a atividade filosófica não se concilia com a escrita poética. A precisão poética e sua riqueza expressiva muitas vezes enriquece a racionalidade do discurso filosófico

EXERCÍCIO DE ESTILO

Marx principiou vários de seus tratados – lúcidos, informativos e críticos – com uma metáfora literária. O expediente – esses tratados eram publicados em jornais –, além de demonstrar a ginga de Marx no baile da Literatura, facilitava a chegada do leitor ao fulcro naturalmente árido de suas análises econômico-sociológicas. Marx também chegou a ter colaborações intensas com um dos grandes autores de sua época: Heinrich Heine. Ambos até foram amigos durante o exílio em Paris. Embora crítico em relação a algumas posições de Heine – típicas dos poetas, para o autor de A ideologia alemã –, Marx jamais deixou de ver nele, inclusive quando o chamava de “cão sarnento”, um dos maiores poetas de seu tempo. E não foi por menos. Heine chegou a falar, antes de Marx –convém lembrar que era 20 anos mais velho do que este – do papel importante que o proletariado seria chamado a desempenhar em breve. Na sua crítica à religião, Marx recuperou, com a expressão “ópio do povo”, uma ideia cristalizada por Heine, que disse em seu livro sobre Ludwig Börne, de 1840, que a religião era um “ópio espiritual” para a “humanidade sofredora”.

Se a Literatura foi tão importante para Marx, também o foi para Hegel, como já tinha sido para Aristóteles e como seria para Theodor Adorno ou até mesmo para Michel Foucault ou Gilles Deleuze, que não cessam de fazer discursos de segunda mão – discursos críticos – sobre obras artísticas de primeira mão, os grandes romances de sua época ou de épocas anteriores. Conforme diria Cortázar em El perseguidor: “Todo crítico, ay, es el triste final de algo que empezó como sabor, como delicia de morder y mascar.” Quanta filosofia na brevidade do aforismo de um narrador!

O aforismo sempre viveu na fronteira entre poesia e Filosofia. Se a origem do aforismo no mais das vezes é espontânea como a da lírica, ele pensa o mundo com a consciência extrema típica da Filosofia. Fragmentário e antissistemático, sentencioso no ato de lapidar uma sensação ou um pensamento e propício tanto para representar a realidade quanto para esboçar aquilo que ainda não é real, o aforismo pode alcançar o estatuto de obra em apenas três linhas. É um estilhaço de pensamento, uma máxima espirituosa de fôlego curto e sabedoria imensa. É uma formulação arguta – ora combativa, ora contemplativa –, apta a desvelar o mundo na ligeireza de um espasmo.3

O ROMANCE SEMPRE FOI TERRITÓRIO FAVORÁVEL PARA ILUSTRAR A DIMENSÃO HUMANA DAS GRANDES QUESTÕES FILOSÓFICAS

Fonte: Psiqué, Ciência e Vida

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